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Burocracia e desinformação impedem o controle da dor

MORFINA

Burocracia e desinformação impedem o controle da dor

Medicamento mais eficaz para tratar o sofrimento oncológico é restringido por falta de conhecimento

Alívio. Ângela Amaral suporta dores oncológicas com o uso de até 12 comprimidos diários de morfina.

Uma dor apavorante várias vezes ao dia. Tão intensa que Ângela Batista Amaral, 54, pensa que nem a morte daria jeito. “Se eu morrer, a dor é tão grande que vai junto comigo. Nunca senti nada parecido”, descreve. Seus gemidos e choros, quando a sensação vem, deixam as filhas desesperadas em casa. O avanço do câncer corrói o peito de Ângela. A oncologista aumentou, então, a dose de morfina de um para três comprimidos, de quatro em quatro horas. Assim que a dor estiver controlada, pode voltar para apenas um comprimido.

O medicamento que alivia o sofrimento de Ângela nos últimos seis meses precisa ser comprado em grandes redes de farmácia pelo professor da escola estadual onde a filha dela estuda, que se sensibilizou com a situação: “Para conseguir a morfina de graça (pelo governo) é muita burocracia, diz que tem um monte de etapas”, contou Ludmila Stefane Amaral, 17, a mais nova de Ângela. O remédio é barato, cada comprimido custa em torno de R$ 0,50, mas, para ela, que chega a tomar de quatro a 12 por dia, representa um gasto mensal de mais de R$ 200 – pesado para quem ganha salário mínimo, de R$ 937.

“A dor do câncer atinge 40% dos pacientes na fase inicial. Em estágios terminais chega a 90%”, indica o médico Gustavo Lages, coordenador do serviço de dor do Hospital das Clínicas e membro da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (Sbed).

Porém, há um subtratamento da dor desses pacientes, e o que está em jogo é a qualidade de vida deles, sobreviver sem sofrimento. Lages menciona estudos europeus que apontam que apenas 6% daqueles que sentem dor intensa recebem os medicamentos corretos, como a morfina – classificado como opioide forte, é o analgésico mais eficaz.

A burocracia para a liberação da morfina começa antes, na aquisição da receita amarela, por parte do médico, que, por lei, tem que ir à Secretaria de Estado de Saúde buscar um talonário específico. Há preocupação quanto à dependência que a droga pode gerar, mas as maiores barreiras são o preconceito e o desconhecimento da classe médica e dos pacientes e seus familiares.

“Há muito tabu ao redor da morfina. O profissional de saúde não tem experiência, não se aprende na faculdade sobre seu uso, então não tem segurança para prescrever ou prescreve subdoses. O paciente e a família pensam que quem usa morfina está morrendo”, explica a geriatra Camila Alcântara.

Pesquisa. Para entender como a morfina vem sendo utilizada em pacientes com câncer de Belo Horizonte e como esse medicamento age na melhoria da qualidade de vida, o anestesiologista Alexandre Mio, especialista em dor, desenvolve seu mestrado sobre o tema em hospitais públicos. Ele já ouviu cerca de 30 pacientes dos 200 que pretende avaliar. “A morfina é fornecida pela Secretaria de Estado de Saúde, só que existe um protocolo excessivo de documentos, e o paciente só consegue obter as doses de duas a quatro semanas depois. Quem tem dor não aguenta esperar”, afirma Mio.

Ângela participou da pesquisa. O câncer, que começou na mama há 12 anos, se espalhou para outras partes do corpo dela e a faz sentir dores intensas nas feridas oncológicas, na cabeça e no braço. “Procuro saber como a morfina impacta a vida da pessoa, qual é o efeito da dor para ela. A dor oncológica provoca um sofrimento muito grande. Há uma grande influência da religiosidade nessa população, que costuma rezar para o sofrimento passar”, diz o médico.

Conscientizar as pessoas e o governo do poder que medicamentos como a morfina têm para ajudar a controlar a dor é um dos intuitos do estudo de Mio. “É preciso flexibilizar as leis e disponibilizar medicamentos auxiliares à morfina, para reduzir os efeitos colaterais”, defende o especialista.

O único receio de Ângela em tomar a morfina é que lhe causa constipação. Cerca de 80% das pessoas que usam ficam com o intestino preso, mas o poder público não fornece laxante, segundo Mio, que logo completa: “Nada que é para aliviar um sofrimento deveria ser visto como gasto, mas como investimento”. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária, responsável pela liberação da morfina, não quis se pronunciar.

Pesquisa

Dado. Entre agosto de 2015 e agosto de 2016, os brasileiros tomaram 40 milhões de doses de opioides, segundo a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma).

EFEITO COLATERAL

“Medo” de vício gera o baixo consumo

Um dos fatores considerados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de um país é justamente o maior consumo de opioides (morfina e outros semelhantes) por habitante. “No Brasil, o consumo é de cerca de 5 mg/per capita ao ano, enquanto nos Estados Unidos chega a 70 mg. São dois extremos, tem que ter controle, mas a questão é saber utilizar bem”, considera Charles Oliveira, presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Intervencionistas em Dor (Sobramid).

A Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica os opioides como essenciais para a qualidade de vida. Mas há entre a população o que o médico Gustavo Lages chama de “opiofobia”, “que leva aos baixos índices (no Brasil) do uso de morfina”.

A justificativa de ser uma droga que pode causar dependência é desconstruída quando outros medicamentos, inclusive semelhantes, possuem o mesmo efeito e são fáceis de ser adquiridos. O anestesiologista Alexandre Mio cita o Oxycontin (também um opioide forte), que tem receita livre, porém custa 15 vezes mais que a morfina. (JS)

Uso é indicado em outros casos

A droga é recomendada não só em casos oncológicos – o estigma está ligado justamente ao fato de ser usada em pacientes com câncer terminal –, mas a morfina é eficaz também em dores agudas, como as pós-operatórias.

“O tratamento da dor tem que ser iniciado de imediato, por questões humanitárias. Não dificulta o diagnóstico, como pensam médicos mais antigos. Uma dor tratada mal causa stress e outras complicações”, esclarece o médico Gustavo Lages. Ele pondera, no entanto, que, em casos de dores crônicas não oncológicas, os opioides devem ser avaliados.

O presidente da Sobramid, Charles Oliveira, acredita que o uso da morfina é melhor do que o abuso de anti-inflamatórios, que geram um custo grande com doenças gástricas. (JS)

Texto Retirado de Jornal O Tempo

para acessar : http://www.otempo.com.br/cidades/burocracia-e-desinformação-impedem-o-controle-da-dor-1.1437581


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